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domingo, 1 de março de 2009

Siron Franco: Goiânia, Rua 57, outubro de 1987


Carlos Sena Passos*

Siron Franco é um artista de obra rica e diversificada, que abarca diferentes categorias como desenho, pintura, objeto, instalação e intervenção em espaços públicos. Sua produção focaliza os diversos conflitos da experiência humana e problematiza as difíceis situações que marcam o nosso tempo: ora discute as implicações da convivência social saturada pela violência e pela bestialidade, ora denuncia as relações de poder viciadas pela crise moral e ética, ora conclama a uma reação diante do colapso do ambiente natural. De vocação crítica e política, é uma obra estofada pela reflexão sobre os traumas e problemas coletivos e visa conversar com o espectador propondo questionamentos capazes de retirá-lo do embrutecimento cotidiano, de alertá-lo sobre os perigos que o cercam e de fazer um chamamento para atitudes compromissadas com a consciência dos valores humanos, da cidadania e da ética.

Em 1987, logo que aconteceu e foi divulgado o acidente radioativo com o césio 137 em Goiânia, Siron Franco produziu uma série de trabalhos que problematizavam as dimensões da catástrofe que se abatera sobre a cidade e principalmente sobre o bairro onde vivera sua juventude. A série composta por pinturas – que foram exibidas na Galeria Montesanti, em São Paulo, ainda na ebulição dos debates que o acidente gerou – e por desenhos – que permaneceram inéditos até a presente publicação nesta Revista da UFG – constrói uma narrativa não linear e pessoal dos sucessivos fatos que marcaram o sinistro acontecimento, formatando um depoimento plástico profundo, e por isto importante, para nós que vivenciamos o acidente e para as gerações futuras que ainda sofrerão suas conseqüências.

Ao olhar, agora, para a “Série Césio” de Siron Franco recompomos todo o impacto que o acidente acarretou sobre a paisagem física e humana de Goiânia, revivemos a experiência de um trauma coletivo pulsante ainda em nossa memória.

A série percorre um trajeto pela paisagem afetada pelo Césio. É simultaneamente lamentação, questionamento, revolta, denúncia, perplexidade, atitude e engajamento, diante da contaminação de um lugar íntimo e público apossado pela eminência do perigo e coberto pela sombra da morte.

Nas pinturas – executadas em técnica mista – existe um sentimento de urgência a impulsionar o gesto que funda as representações, e o espaço da tela é estruturado em função da afirmação da materialidade e da memória dos acontecimentos que marcaram um espaço determinado – Goiânia, Bairro Popular, Rua 57 – em um tempo específico – outubro de 1987.

Sobretudo, é importante considerar nas pinturas o uso que o artista faz da terra como matéria pictórica, abrindo para miríades de significações que parecem reafirmar que é desta terra que fomos feitos todos nós, que ela simboliza para nós a fecundidade e a renovação da vida, e que é sobre ela que nos fixamos no solo pátrio, que fundamos nosso lugar de pertencimento e que demarcamos o território em que nos movemos e agimos, tanto em concepções afetivas quanto políticas. A terra “contaminada” de Goiânia foi empregada em camadas espessas que cobrem partes ou toda a superfície dos suportes, como se esse uso reagisse à negatividade impingida à cidade naquele momento: através destas pinturas a terra de Goiânia retoma uma aura de sagrado, impõem-se com uma força telúrica que emana de todo o planeta, e sedimenta um terreno em que problemas centrais para a contemporaneidade são colocados em questão.

Relacionado ainda ao lugar onde ocorreu o acidente, Siron Franco traça uma cartografia com mapas que demarcam uma espécie de via crucis do Césio 137 em deambulação pela região central de Goiânia. Algumas das pinturas registram a arquitetura presente no Bairro Popular: casas familiares com platibandas simples, alpendres acolhedores, telhados divididos em várias águas e muros frontais de baixa altura; documentam o instante em que o lugar de vida pacata foi abalado por um acidente de alta gravidade, capaz de torná-lo um território sitiado pela maldição de uma estranha luz azul.

Siron Franco acompanhou o percurso do Césio 137, documentou seus estragos, suas vítimas, a desolação, a preocupação e a ansiedade da população goianiense. Uma das pinturas da série trata do lugar último onde foram depositados os rejeitos radioativos do acidente. O depósito “provisório” instalado em Abadia de Goiás, na região metropolitana de Goiânia, é representado pelo artista no interior de uma montanha de terra que recobre grande parte da tela, deixando apenas uma nesga de horizonte aparecer ao fundo, na parte superior da pintura. O Depósito é um cemitério com câmaras subterrâneas; lápides e conteiners assemelham-se; o que se sepulta ali não é apenas material contaminado, mas também um pouco da vitalidade mais primitiva e essencial à humanidade; é um portal que abre para muita indagação sobre a condução desta história sem definição que é o destino dos rejeitos radioativos.

Há outro material extraído da realidade que foi incorporado pelo artista para constituir algumas das pinturas desta série e que também merece consideração. Trata-se de vestimentas, que imersas na materialidade da pintura indiciam a presença dos corpos das vítimas letais imediatas ao acidente. Agregada ao corpo pictórico constituído por planos ora de terra ora de tintas de tonalidades graves ora de cor prata metálico, a roupa tensiona a superfície com seus volumes e rugas peculiares, e atua como um duplo simbólico do corpo ausente que potencializa diante dos nossos olhos a memória dolorida de todos os que faleceram vitimados pelo Césio 137.

A série de desenhos executados a gouache sobre o suporte preto do papel, registra de uma maneira simples e despretensiosa, com gesto enérgico e linha firme, ao modo de esboços realizados na trincheira, personagens e acontecimentos envolvidos no acidente radioativo. O suporte empregado corrobora com o ambiente de luto e isolamento criado na cidade. Uma noite escura encobre o palco onde desenrola graficamente imagens do acidente. A luz fugidia parece encontrar apenas o que foi contaminado. Enigmática a narrativa se desenvolve em quadros que traduzem, sem cronologia, as inúmeras situações: uma folha de ouro fragmentada sobre o papel; o roubo do aparelho de RX da antiga clínica no centro de Goiânia; novamente a cartografia do bairro e de suas imediações; atos cotidianos dos atores do acidente; as primeiras vítimas; os montes de terra retirados das áreas de contaminação; os técnicos da CNEN investigando os níveis de radioatividade; construções geométricas como cadeias complexas que aludem a contaminação espalhada pela cidade; as imagens da sombra da morte que se aproxima rapidamente.

Todo o conjunto desta série de Siron Franco dedicada ao episódio do acidente com o Césio 137, para além de mostrar o pânico instaurado em nosso meio, constitui uma voz coletiva que se materializa através do trabalho do artista, para falar da nossa permanente indignação, da nossa contínua indagação sobre o destino deste lugar, das pessoas e da cidade após o acidente de outubro de 1987.

* Artista plástico, Prof. Ms. da FAV, Diretor do Espaço Cultural PROEC/UFG

Este texto foi originalmente publicado na Revista UFG-Universidade Federal de Goiás, agosto de 2007, Ano IX, nº1.

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