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sábado, 17 de outubro de 2009

Arte Contemporânea Goiana - da década de 1990 até hoje

Arte Contemporânea de Goiás: experiências com a vida cotidiana

Carlos Sena Passos*


A produção artística contemporânea de Goiás está preocupada com as questões da arte e da vida que surgem na atualidade. Com o crescimento e a transformação de Goiânia numa metrópole regional, as poéticas regionalistas marcadas pela linguagem sertaneja, típicas da cidade interiorana, arrefeceram e tornaram-se obsoletas. A vida urbana que se formou na capital, com o ritmo acelerado do trânsito, o alto volume de informações em circulação e a dominação do ambiente de consumo globalizado, trouxe um complexo de novas referências visuais e um imperativo comportamental citadino que mesclou-se à cultura rural, existente como bagagem antropológica. A partir dos anos 90 a produção contemporânea goiana conseguiu formar um conjunto significativo de artistas capazes de dialogar com as questões dos circuitos artísticos brasileiro e internacional. Sem esquecer os princípios imemoriais da cultura local, o compromisso desses artistas se fez com a reflexão sobre confronto do sujeito com o seu mundo, com o aqui e o agora, com o que é a essência do presente.



Siron Franco

Este ensaio visual apresenta trabalhos de treze artistas formados após a consagração da obra de Siron Franco, artista cuja grande importância consiste em transpor a mitologia regional para o contexto da contemporaneidade. O ensaio exibe trabalhos recentes formando um conjunto das atuais pesquisas artísticas em andamento, e reúne produtores que surgiram sob o rótulo Geração 80 como Selma Parreira, ZéCésar, Luis Mauro e Edney Antunes, a artistas que demarcaram suas pesquisas a partir da última década do Séc. XX como Marcelo Solá, Divino Sobral, Juliano de Moraes , Pitágoras e Rodrigo Godá, e ainda a jovens nomes que agora emergem como Helga Stein, Marcus Freitas, Sandro Gomide e Ludmila Steckelberg. Este recorte com obras de artistas de diversas gerações mostra como o panorama artístico atual, apesar de registrar grande atividade das linguagens mais tradicionais como desenho e pintura, está fortemente comprometido com as pesquisas que envolvem meios fotográficos, inesperadas situações tridimensionais e materiais insólitos. É importante destacar também que muitos desses artistas transitam entre categorias diferentes, do desenho a pintura ou a fotografia, da gravura a assemblagem, do objeto a fotografia, da escultura a instalação, do desenho a intervenção.

Tais artistas têm apresentado em suas produções mais recentes investigações sobre as diversas camadas que compõem a vida cotidiana, desde aquelas mais despercebidas até as mais relevadas, têm vasculhado as situações conflituosas e paradoxais, indiciado problemas, feito observações poéticas sobre as experiências do cotidiano, o nosso modo de viver na atualidade.



Marcelo Solá

É considerável que na produção goiana são muitos os registros poéticos do cotidiano, da memória e dos afetos corroídos pelo isolamento e pela incomunicabilidade, realizados com a utilização dos suportes e materiais habituais do desenho e da pintura e dentro de um campo emocional expressionista. Porém, cada artista coloca seu modo singular de tratar a questão, renovando-a. A obra de Marcelo Solá se coloca na fronteira do anti-desenho, explorando o impulso do gesto, a força do risco que constitui a linha delimitando figuras projetuais, ou revelando sua expressividade subjetiva que ocupa o espaço do suporte, ou valorizando os vazios como zonas de silêncio. Datas inverídicas, adiantadas ou atrasadas, denunciam um choque no sistema de catalogação, falam do colapso na regulagem do tempo.

Luiz Mauro

Pintor e desenhista, Luis Mauro vem desdobrando seu trabalho de caráter intimista repleto de melancolia. Com tonalidades graves e escuras cria atmosferas sombrias, paisagens metafísicas ocupadas por arquiteturas esquecidas e por personagens adormecidos, seres em suspensão, objetos rituais, e que formam emblemas da solidão e da dor.

Pitágoras

Pitágoras
trabalha simultaneamente com desenho, pintura e intervenção sobre editoriais de moda e bunners publicitários que formam os modelos fúteis da sociedade de consumo e dirigem o comportamento das massas. Seus personagens são retratados caricaturalmente, angustiados, monstruosamente mascarados e entregues às vaidades e paixões humanas.



Rodrigo Godá

Também Rodrigo Godá trabalha simultaneamente com pintura e desenho, mas distante do expressionismo busca referências no universo da cultura popular. Sua produção lírica e lúdica forma se por meio da fusão da cultura à natureza, da invenção de maquinarias absurdas, construções precárias, gambiarras que funcionam como processadoras de florestas, de cores, de pessoas e de cidades.



Divino Sobral

É notável ainda, o interesse em discutir problemas relacionados à paisagem urbana, às contradições que surgem na cidade como ocupação urbana, divisão de território, atrito entre industrial e artesanal, entre as culturas popular e de massa, entre a liberdade do cidadão e o aprisionamento do anonimato. Para alguns artistas a paisagem urbana é um motivo a ser reinterpretado e refeito continuamente. A recente pesquisa em fotografia e vídeo de Divino Sobral surge da documentação de pinturas de paredes coloridas nas fachadas de comércio popular na periferia de Goiânia, enquadradas por olhar de tradição construtivista e que ao fundir a experiência da abstração formal erudita com a plasticidade popular elabora uma espécie de antropologia visual, um memorial da epiderme da cidade.

Marcus Freitas

As fotografias de Marcus Freitas revelam um processo de desfazimento da paisagem urbana, uma liquefação que distorce o registro realista e desvia o olhar para uma experiência subjetiva de confronto do sujeito com a cidade. Suas fotos sob um tratamento pictórico exibem a crescente verticalização e o intenso movimento imobiliário de Goiânia.

Zé Cézar

ZéCésar
que durante longo tempo pesquisou gravura, desenvolve agora assemblagens com papelões de caixas de embalagens descartadas. O refugo industrial urbano é apropriado e tornado suporte, entalhado cuidadosamente com figuras arquitetônicas, e depois é acumulado, superposto e sobreposto em camadas criando imagens semelhantes a grandes metrópoles, exageradamente ocupadas.

Edney Antunes

Edney Antunes
trabalha sempre com temas urbanos e dentro de uma chave crítica que une arte e política, com a proposta de promover reflexões sobre os processos de exclusão e de marginalização social. As obras da série “Daninhos” funcionam como anúncios anti-publicitários, nos quais o artista sobrepõe logomarcas de agrotóxicos a fotografias de mendigos nas ruas de Goiânia, questionando a reserva de miséria mantida pelo capitalismo.



Juliano de Moraes

As preocupações com a paisagem, com a topologia e com a topografia marcam a pesquisa mais recente de Juliano de Moraes. Com caráter bastante experimental, o artista investiga conflitos entre situações de instalação e de escultura, entre materiais diversos como grama viva, sal, graxa, ferro e madeira, para construir um lugar inesperado onde a natureza é manipulada, as superfícies secas e frias e os corpos pregnantes. Suas obras configuram uma situação orgânica onde tudo é bruto e delicado.



Helga Stein

Outro problema colocado pela produção contemporânea refere-se aos modos de construção da identidade, aos estatutos do auto-retrato, da imagem do sujeito e de seus outros eus, à materialidade e à aparência do corpo diante da virtualidade das imagens e das técnicas de estética corporal, aos padrões sociais que regulam o que é íntimo ou público, aos padrões de beleza apregoados pelas técnicas de manipulação do corpo. Helga Stein trabalha no terreno da arte digital explorando ferramentas que permitem o desenvolvimento de sua pesquisa com sua própria imagem. O auto-retrato é a base para a criação de inúmeras personagens que surgem pela manipulação de uma matriz fotográfica no computador, e que problematizam a identidade como algo passivo de ser reinventado a cada encontro consigo e com os outros.

Sandro Gomide

Pintor e desenhista, Sandro Gomide também investiga a categoria de auto-retrato, representando sua imagem em situações de conflito e de violência, expressando sentimentos como angústia, desespero, dor, solidão e medo, característicos do dia-a-dia contemporâneo.



Ludmilla Steckelberg

Coube à arte contemporânea a tarefa de refletir sobre a formação da memória pessoal e coletiva num ambiente onde a amnésia acompanha o descarte do consumo, onde a ausência de vínculos entre presente e passado, a aceleração do tempo, e a efemeridade das relações humanas influenciam no crescente processo de esquecimento coletivo. Aqui a memória é abordada em dupla via: pelo esquecimento e pela lembrança. Ludmila Steckelberg se integra na tendência dos manipuladores de fotografias, apropria-se de registros de antigos álbuns de família e com ferramentas do computador retira personagens já falecidas, deixando na imagem figuras negras, vazias, que falam do processo coletivo de apagamento e esquecimento.

Selma Parreira

Pintora e desenhista Selma Parreira tem investigado as potencialidades da fotografia em função de uma pesquisa com antigos objetos herdados de um armazém familiar; suas fotos abordam os processos de rememoração após a fase do esquecimento.

Esse ensaio é um recorte possível no panorama da arte contemporânea de Goiás. As obras reproduzidas nas páginas a seguir se abrem para múltiplas interpretações, para além dos limites que minha organização imprimiu sobre elas. As obras adensam reflexões à medida que dividimos com elas o exercício de aprofundar na experiência de compreender o mundo que vivemos.



* Artista plástico e mestre em Arte publicitária e Produção simbólica pela ECA/USP, professor da Faculdade de Artes Visuais, diretor do Espaço Cultural da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFG.


Artigo publicado originalmente na Revista UFG, junho 2008, AnoX n°4.