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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Desenho da nossa própria identidade




Carlos Sena


Sobrevivência é o nome do fantasma que voltou a assustar os produtores, promotores e agenciadores de cultura, que, de alguma forma, operam com as Instituições Culturais de Goiás. A instabilidade, a insegurança e a insatisfação dominam as rodas quando se fala no gerenciamento dos espaços públicos. E mais, vai se configurando um quadro não condizente com os anseios da área cultural, que depois de muito avançar nos últimos anos, acabou por criar uma expectativa de “longos e bons tempos” para a cultura. No início deste novo milênio, Goiás iniciou um denso processo de amadurecimento cultural, que agora parece esmorecer.

Os avanços acontecidos nos últimos anos foram perceptíveis nas diversas segmentações culturais, sejam ligadas à preservação da memória sejam atreladas aos desdobramentos do presente. Mudanças de enfoque dos produtores e da política cultural oficial incidiram sobre o redimensionamento da própria imagem do Estado na trama da cultura brasileira. Até 20 anos atrás estávamos vinculados apenas ao regionalismo, sem contato com outros centros produtores e realizávamos produções de interesse apenas local. Mas, há mais dez anos (sem esquecer o que antes fomos) passamos a experimentar situações de maior diálogo com outras influências culturais (nacionais e estrangeiras), a ter produções mais contextualizadas no ambiente urbano e focadas nas questões do mundo contemporâneo, e isto levou ao reconhecimento das nossas propostas em destacados fóruns de debates da cultura brasileira.

Todavia, não foi só em Goiás que as dúvidas e as incertezas se instalaram na área cultural. Em muitos lugares as incertezas chegaram com as últimas notícias de mudanças nas estratégias políticas da administração dos aparelhos culturais dos Estados (o que deriva das mudanças de Governo, de partidos e de interesses). Ações sucessivas e previsíveis de desmonte do aparelho cultural público: cortes de verba, demissão de pessoal, fechamento de diversos órgãos, desatendimento ao público consumidor de bens culturais, etc. No Brasil é sabido que as instituições culturais atreladas à máquina governamental sempre viveram a mercê do destino que cada mandato lhes conferira. E o país mesmo nunca teve uma real política cultural.

A desmontagem do aparelhamento cultural público exibe o quanto a área é frágil, e, principalmente, mostra o quanto os governantes desconhecem a importância do acesso da população aos bens culturais – que em suma formam um patrimônio coletivo.

Traçar uma política cultural para o Estado implica em fortalecer as instituições culturais, por meio de verbas, de boas condições físicas, de contratação de recursos humanos devidamente preparados para o exercício das inúmeras atividades da administração cultural, dos recursos que a tecnologia oferece, de metas que venham contribuir para profissionalizar os trabalhadores da área cultural, e de programas que permitam, sobretudo às classes mais carentes, o maior acesso aos bens culturais (incluídos aqui os populares e os elitizados). Uma política cultural concreta objetiva incentivar a continuidade da produção, ampliar e preservar o patrimônio artístico e cultural para disponibilizá-lo à população de forma correta, conseqüente, educadora. É o tecer de uma trama entre gerações do presente, do passado e do futuro que desenha nossa própria identidade. É uma aliança entre os aparelhos culturais e educacionais que permite a democratização dos bens culturais como elemento na formação da cidadania legítima. É um investimento em todos os sentidos!

Da ausência de uma política cultural séria podem advir conseqüências graves como a geração de cidadãos desprovidos de memória, de referências de sua história e de sua identidade, o enfraquecimento do sentimento coletivo de pertencimento a um povo, e também ações desastrosas como uso indevido de benefícios fiscais para alimentar projetos demagógicos, oportunistas, incipientes e assistencialistas que antes de fornecer uma consciência cultural aos cidadãos, visam o impacto através de intervenções de qualidade duvidosa e valor questionável. Muitas delas já se esboçam na paisagem, infelizmente.



Carlos Sena
é artista plástico, professor da FAV/UFG e diretor do Espaço Cultural /UFG.



Este texto foi originalmente publicado no jornal O Popular - seção debates: Política cultural em Goiás, em 25 de março de 2007.



A foto acima é de autoria de Marcus Freitas e mostra a exposição inaugural da nova sede do Museu de Arte Contemporânea de Goiânia, que até o momento da reedição deste texto ( 18 de fevereiro de 2010 )continua fechado.

Um monumento ao desperdício



Leandro Fortes

Prestes a completar 103 anos de idade, o arquiteto Oscar Niemeyer tem uma única pendência na vida: resolver um calote de 200 mil reais que levou do governo de Goiás. A dívida diz respeito ao projeto do Centro Cultural Oscar Niemeyer, um elefante branco de 17 mil metros quadrados, na entrada de Goiânia, levantado ao custo de 60,8 milhões de reais, mas abandonado desde que foi inaugurado, inacabado, pelo então governador Marconi Perillo, no último dia de seu mandato, em 30 de março de 2006. A obra, no entanto, foi entregue ao eleitor sem estar concluída ou paga, com erros de cálculo estrutural e sob suspeita de superfaturamento. Trata-se de um complexo formado por museu, biblioteca, teatro e um monumento aos direitos humanos. Abandonados há quatro anos, os prédios estão em franca degradação física.

Definido por Marconi Perillo, no discurso de inauguração, como “um ícone da Marcha para o Oeste puxada por Juscelino Kubitschek”, o Centro Cultural acabou por se transformar num monumental pepino a cair no colo do governador Alcides Rodrigues, do PP. Ele assumiu o governo em 2006, quando Perillo renunciou para concorrer ao Senado Federal, para então reeleger-se, no mesmo ano, para o cargo, com o apoio do tucano. Hoje, rompido com o antigo aliado, recusa-se a reiniciar as obras antes do pronunciamento final do Tribunal de Contas do Estado (TCE) sobre o assunto. Herdou, além da obra inacabada, o constrangimento de fazer parte de um calote dado no arquiteto centenário que dá nome ao complexo cultural.

Gerente do projeto, o arquiteto João Niemeyer, sobrinho-neto de Oscar, tentou diversos contatos com o governo de Goiás para receber a parte que falta ao escritório da família – cerca de 200 mil reais, de um total de 2 milhões de reais –, mas não teve sucesso. De acordo com a assessoria do governador Rodrigues, não será possível buscar uma solução antes de saber a decisão final do TCE. Politicamente, isso significa que a coisa ainda deverá demorar um bocado, apesar da idade avançadíssima do principal interessado no caso, justamente o arquiteto que dá nome ao Centro Cultural.

Embora fora do governo estadual, Marconi Perillo, em quase oito anos de mandato, aparelhou politicamente o TCE, onde ainda mantém grande influência, inclusive sobre o relator do processo do Centro Cultural, o conselheiro Naphtali de Souza, também ex-governador do estado. Por essa razão, não há quem aposte numa solução antes das eleições de outubro.

CartaCapital esteve no Centro Cultural. A primeira visão que se tem do lugar é o da pirâmide vermelha bolada pelo arquiteto, uma representação artística feita em favor dos direitos humanos. Exposta ao sol, mas sem manutenção, o monumento desbotou. Virou uma pirâmide rosa. Abaixo dela, galeria e auditório apodrecem aos poucos. As instalações elétricas pendem do teto, as cadeiras estão cobertas de poeira e um dos vidros blindex foi quebrado e substituído por uma placa de compensado de madeira. A sala de exposições levou o nome de Célia Câmara, mãe de Jaime Câmara Júnior, dono da maior rede de comunicação de Goiás, inclusive a TV Anhanguera, retransmissora da TV Globo. Trata-se de um forte aliado de Marconi Perillo.

Nada se compara, no entanto, ao estado geral da biblioteca. Projetada para abrigar 140 mil livros, o prédio, todo de vidro fumê, é um esqueleto gigante onde se abrigam dezenas de fileiras de estantes vazias. A estrutura interna está completamente comprometida pelas infiltrações e pela oxidação das partes metálicas que não foram pintadas, como corrimões e esquadrias de sustentação. Há buracos no forro do teto onde, por entre teias de aranha, despencam fios, canos e luminárias. No terraço, 78 peças de vidro fumê, da época da construção, estão escoradas numa parece onde alguém escreveu, com giz de cera vermelho: “Prove o abandono”.

O mais grave é que, em novembro de 2005, portanto, quatro meses antes da inauguração, o então diretor de Obras Civis da Agência Goiana de Transporte e Obras Públicas (Agetop), Luiz Antonio de Paula, informou ao governo Marconi Perillo da impossibilidade de a biblioteca receber livros. Um ofício assinado por ele, encaminhado ao então presidente da Agência Goiana de Cultura (Agepel), Nasr Nagib Chaul, informava que somente o primeiro pavimento do prédio, de quatro andares, poderia ser utilizado como biblioteca “em face às sobrecargas adotadas pelo calculista estrutural”. Ou seja, se encher de livro, o edifício vem abaixo.

O relatório do TCE, baseado em vistorias e análises contábeis, não só enumera uma grande quantidade de problemas estruturais, de trincamentos a infiltrações nas paredes, como aponta uma série de sobrepreços (superfaturamento) ao longo da construção, orçada, inicialmente, em 37,4 milhões de reais, mas que consumiu, até agora, 60,8 milhões de reais. A construtora contratada pelo governo, Warre Engenharia, calcula que ainda faltam pelo menos 10 milhões de reais para o Centro Cultural ficar, definitivamente, pronto. “Temos todo interesse em concluir o centro, mas não podemos fazer nada até o pronunciamento final do Tribunal de Contas”, justifica Linda Monteiro, atual presidente da Agência de Cultura, a qual o Centro Cultural ficará subordinado, quando pronto.

O senador Marconi Perillo afirma que o abandono do Centro Cultural Oscar Niemeyer foi premeditado por seu sucessor e ex-aliado Alcides Rodrigues a fim de desgastá-lo politicamente. Perillo é candidato ao governo de Goiás nas eleições de outubro e trava uma briga cada vez mais acirrada com Rodrigues. Segundo o senador tucano, “99%” da obra estava concluída quando o complexo foi inaugurado. “O problema é que o governador, que era meu vice e estava na inauguração elogiando o projeto, me traiu”, diz Perillo. “Se eu tivesse continuado no governo, teria concluído o restante da obra em 30 dias”, garante.

“Inaugurei o que estava pronto”, explica, para justificar a entrega da obra ainda inacabada. Segundo o senador, havia o compromisso público de Alcides Rodrigues em não só completar o complexo cultural, mas, também, pagar o arquiteto Oscar Niemeyer. “Eu deixei o dinheiro empenhado para isso”, afirma. “O governador resolveu, por capricho, deixar de terminar uma obra tão importante para o povo de Goiás”, acusa Perillo, com extrema candura a despeito do tom vibrante.

- publicado originalmente na REVISTA CARTA CAPITAL 16/02/2010 13:45:34

Imagem: Centro Cultural Niemeyer - "LADYCBARRA".

Este artigo atualiza a discussão aberta pelo texto de opinião "Desenho da nossa própria identidade" republicado acima.